No meu tempo era comum instruir as massas com
fábulas e contos de fadas — hoje em dia já não sei como fazem isso, e se ainda
se valem desses meios. Então, gostaria que me perdoassem, se meu conto possa
parecer arcaico aos olhos modernos, mas conquanto transmita bem sua moral, que
seja escusado de quaisquer falhas que possa vir a ter.
Como todo conto de fadas, o meu também começa
com "Era uma vez", mas se me permitirem gostaria de fazer algumas
inovações, para que não julguem-me antiquado demais. Os outros contos de fadas
de passam em reinos sem nome e genéricos, governados por reis, rainhas,
príncipes, princesas (ou quaisquer outros títulos de nobreza) igualmente
genéricos e sem nome. O meu conto se passa num principado com um bom nome,
Churippu, regido por uma princesa de igual bom nome — Sarah. (Se me permitem
dizer, é um ótimo nome para uma princesa, não acham?)
Enfim, sem mais delongas; não quero causar
vosso sono com explicações prolixas sobre um conto que nem ainda começou, mas
sim instruí-los, como disse. Como poderão fazer seu juízo do meu conto se eu
não começá-lo propriamente?
Pois bem. Era uma vez, no principado distante
de Churippu, uma princesa chamada Sarah. Sua família governara aquele lugar com
justiça e sabedoria por gerações, e com a princesa Sarah não era diferente; sob
seu governo Churippu chegara a seu ápice, sem contar que era um dos locais mais
bonitos da região — a princesa gostava muito de flores, e em uma de suas
extensivas viagens aprendera a dominar a arte do origami; assim sendo, todas as
casinhas de Churippu, fossem grandes ou pequenas, eram enfeitadas com flores e
belas dobraduras feitas à mão por ela própria, o que fazia do lugar bastante
colorido e agradável aos olhos.
Além de proficiente artesã, a princesa também
era conhecida por ser compassiva, bondosa e atenciosa com quem a fosse procurar
— era bastante querida por todos do principado, que se sentiam felizes o tempo
todo por a terem como soberana. Ela era, realmente, perfeita — é uma pena que
no mundo real não possam existir pessoas como a princesa Sarah! Ele seria muito
mais suportável.
Infelizmente devo agora mudar meu foco — por
mais que me doa o coração ter que parar de falar das maravilhas do principado
de Churippu e de sua bela regente por ora, se eu não o fizer não existiria
conto, e teria desperdiçado vosso tempo.
Eis que, certo dia, chegou a Churippu uma
singular figura: era um rapaz extremamente pálido, de cabelos desordenados e
barba que o fazia parecer muito mais velho do que realmente era, apesar de mal
ter chegado à casa dos 20 anos. Sua vestimenta era completamente negra dos pés
à cabeça, e seu semblante estava sempre marcado por uma ruga de melancolia. Era
um trovador (e um bastante estranho, por sinal); e já que ninguém sabia seu
nome ou de onde era proveniente, todos o chamavam simplesmente assim: Trovador
Estranho.
O Trovador Estranho caminhava mundo afora
procurando por algo que fizesse a ruga que desfigurava seu rosto com tristeza
ir embora, mas nunca obtivera sucesso. Pensou que talvez em Churippu seria
diferente, e lá se estabeleceu.
Os habitantes do principado olhavam para ele
com desconfiança; sua figura malcuidada e tristonha contrastava grandemente com
os semblantes risonhos e corados dos demais. Caminhando vagarosamente, o
Trovador Estranho chegou a uma praça, sentou-se num dos bancos de madeira e
tirou do bolso da capa um caderno ensebado, e começou a escrever. E essa era a
única coisa que fazia, o dia todo, parando apenas para dormir à noite. Com o
passar do tempo, a desconfiança dos habitantes de Churippu transformou-se em
tolerância, e muitos inclusive paravam para escutar os poemas que ele escrevia,
mas não os entendiam porque, apesar de bonitos, eram demasiado tristes, e
ninguém em todo o principado conhecia a noção de tristeza.
E, assim, dias se passaram, até que as
notícias da chegada do Trovador Estranho a Churippu vieram parar nos ouvidos da
princesa Sarah. Ávida por tudo que era novo e por fazer novos amigos, partiu
apressada para conhecer o poeta sem-teto. Ela se aproximou do Trovador Estranho
cautelosamente, para não assustá-lo, já que julgava (e corretamente) que ele
não estava habituado com o convívio humano.
"Bom dia!", disse a princesa
alegremente, com um lindo sorriso nas faces coradas. "Fico muito feliz que
você queira conhecer o principado de Churippu!"
"Obrigado", respondeu ele, num
sussurro quase imperceptível, sem desgrudar os olhos do caderno no qual
escrevia.
"Meu nome é Sarah! Sou a princesa
daqui." Ela estendeu a mão para cumprimentá-lo, mas o moço, que realmente
não estava habituado a ser tratado com carinho, retraiu-se como uma serpente.
"É... um prazer te conhecer",
respondeu ele titubeante. "Você não veio me machucar, veio?"
"Percebo que você não é muito habituado a
gentilezas, não é?", ela começou a passar as mãos pelo cabelo bagunçado do
rapaz lentamente; este foi, aos poucos, cedendo à gentileza da moça. "Por
que não me conta a sua história? Prometo fazer o possível para te auxiliar,
porque ninguém, ninguém mesmo, é triste em Churippu!"
O Trovador Estranho hesitou por um momento,
mas incentivado pela bondade que o rosto da princesa exprimia, começou a falar.
"Há muito tempo cansei-me do mundo, pois
vi que ele não tinha nada a me oferecer. Bens materiais nunca me agradaram,
tampouco cargos e títulos, e desde que descobri a arte da poesia minha única
pretensão passou a ser obter inspiração para a minha obra suprema. Enquanto não
a obtiver, jamais poderei me sentir realizado."
"E o que é a sua obra suprema?"
"Será aquela obra que esperei a vida toda
para fazer; e quando a fizer alcançarei tudo que sonhei."
"E então se sentirá realizado?"
"Quem sabe."
A princesa pôs-se a refletir por alguns
segundos, e em seguida disse:
"Você não tem amigo nenhum?"
"Não."
"Eu e você podemos ser amigos! Vou te
mostrar as coisas bonitas que existem aqui, e você pode encontrar
inspiração!"
"Acha mesmo que vai ser capaz de me
devolver a felicidade?"
"Posso tentar!", exclamou a princesa,
exultante. "É impossível alguém ficar triste por muito tempo na minha
Churippu!"
E, assim, a princesa Sarah levou o Trovador
Estranho ao castelo onde residia. Seria vão descrever o quão bonito era. Após
um longo período de adaptação, gradualmente a amizade entre os dois foi ficando
cada vez mais forte e o Trovador Estranho já se tornava bem mais desinibido.
Ele e a princesa trocavam presentes e outros agrados ocasionalmente, e gostavam
de conversar sobre vários assuntos quando a noite caía. O Trovador Estranho
julgou que achara tudo pelo que procurava em Churippu, e lá decidiu ficar, sob
os cuidados da princesa Sarah, uma das poucas a demonstrar simpatia por sua
condição.
E é neste ponto que eu gostaria bastante de
terminar meu conto, com aquela clássica frase "...E viveram felizes para
sempre", mas receio que isso não será possível, por três motivos. O
primeiro é que, com a finalidade de modernizar meu conto (já que disse que
faria algumas inovações), decidi não encerrá-lo com esta frase já tão batida. O
segundo é que ainda existem coisas sobre nosso herói que devem ser narradas. E
o terceiro, que é o principal deles, é que ainda não transmiti minha moral. Com
tantas coisas ruins que acontecem neste mundo, admito que seria muito agradável
poder encerrar aqui, com um maravilhoso quadro do amor de dois amigos que
imprimisse ternura aos vossos corações, mas se deixasse meu conto incompleto
poderiam chamar-me de mentiroso caso descobrissem a verdade no futuro, por
outros meios que não a minha pena. Assim sendo, perdoem-me, e continuemos.
O Trovador Estranho mentira sobre não ter
amigos: na verdade, mentira mais ou menos. Ele tinha um companheiro, que o
seguia para todo canto, mas ninguém fora ele conseguia enxergá-lo, por isso
decidiu emitir sua existência à princesa. Era um pequeno demônio de feições
reptilianas, de nome Scarbô, e é extremamente obscuro como os dois se
conheceram. É sabido porém que, talvez para poder alcançar a sua obra suprema,
o Trovador Estranho aceitou a companhia de Scarbô em algum ponto de sua vida, e
sob sua tutela escreveu seus melhores poemas; mas esta era a razão do pobre
rapaz ser tão triste. Scarbô era composto de tristeza pura, mas o Trovador
Estranho não sabia disso, e continuava pedindo seus conselhos sempre que podia.
Eis que certo dia, quando a princesa Sarah havia ido dormir e o Trovador
Estranho ficou a sós com Scarbô, ambos tiveram a seguinte conversa:
"Você não acha que ficou aqui tempo
demais?" — Scarbô falava com um tom extremamente sarcástico o tempo todo.
"Mas eu gosto daqui", respondeu o
Trovador Estranho. "A princesa me trata bem, e me sinto feliz."
"Feliz? Como pode alcançar sua obra
suprema e se sentir realizado se for feliz?"
"E por que não?"
"Você já reparou como tudo neste lugar é
igual?"
"Como, igual? Tudo aqui é bem bonito.
Para todo lugar que olho não vejo nada que seja repetitivo."
"Não é o lugar em si. São as pessoas. Não
vê como elas estão sempre sorrindo o tempo todo?"
"Porque são felizes, oras."
"Exato! Pessoas felizes sorriem o tempo
todo por serem frívolas. E pessoas frívolas nada querem com a nossa arte. Você
viu que ninguém ligou para nenhum dos seus poemas desde que chegou até aqui.
Essas pessoas felizes não entendem a verdadeira arte, que vem do sofrimento! E
elas próprias nem ao menos têm ideia do que 'sofrimento' significa! Quem não
conhece o sofrimento é frívolo, e quem é frívolo é descartável. Você não quer
ser frívolo, quer?"
"Não... Mas, e a princesa? Eu e ela somos
amigos."
"Ela não é sua amiga. Ela apenas finge
ser sua amiga para poder fazer-lhe uma lavagem cerebral de algum tipo, e
tornar-lhe uma dessas aberrações robóticas sorridentes. Você cometeu um erro
terrível confiando nessa moça. Vamos sair deste lugar assim que tivermos a
chance!"
"Talvez você tenha razão. O que deveremos
fazer?"
"E quando foi que eu não tive? Deixe
comigo. Amanhã lhe direi o que fazer. Mas antes, arrume suas coisas para que
saiamos daqui o mais rápido possível!"
E, assim, no dia seguinte, o Trovador
Estranho, influenciado por Scarbô, foi ao encontro da princesa Sarah.
"Bom dia!", disse ela com alegria.
"O que iremos fazer hoje?"
"Nada", respondeu o Trovador
Estranho, repetindo o que Scarbô sussurrava em seu ouvido. "Estou deixando
este lugar."
"Mas... por quê?", perguntou a
princesa com consternação. "Até agora estávamos nos dando tão bem! Fiz
algo errado?"
"Você está influenciando minha arte de
forma negativa! Jamais vou conseguir alcançar minha obra se você ficar me
fazendo sorrir o tempo todo como um idiota!"
"O que é isto que você está dizendo? O
que aconteceu com você de uma hora para outra? Você está diferente!"
"A única coisa que aconteceu é que eu
percebi que você só quer me controlar! Eu não preciso da sua ajuda, está bem?
Vou sair daqui e nunca mais olhar para a sua cara de novo!"
"Ninguém aqui quer te controlar!", a
princesa gritava, exasperada. "Mas você nunca vai conseguir chegar a lugar
nenhum se continuar se deixando entristecer por tudo!"
"Afinal o que você entende de mim ou da
noção de sofrimento? Você não passa de uma aberração da natureza!"
Aquilo foi demais para o coração
demasiadamente bondoso da princesa. Talvez pela primeira vez em sua vida sentiu
uma fúria descomunal, e suas faces ficaram vermelhas. Quase à beira das
lágrimas, ela vociferou:
"Pois muito bem! Já chega! Não te quero
ver neste castelo ou nas imediações deste principado nunca mais! Pelo menos
enquanto você não parar de ser um fardo deprimente às costas de todo
mundo!"
"Parece bom para mim", disse o
Trovador Estranho, e saiu do castelo. À medida que se distanciava de Churippu,
porém, foi ficando com um sentimento de remorso cada vez maior em seu coração.
Os portões do principado se trancaram para ele; já não era mais bem-vindo lá.
"O que você fez?", chorou o Trovador
Estranho ao seu demônio. "Viu como a princesa ficou nervosa e magoada? Eu
não queria que isso acontecesse!"
"Mas teve que acontecer", replicou
ele. "Senão como vai encontrar a sua inspiração necessária?"
"Não! Eu feri uma amiga! Preciso pedir
desculpas!" Ele se ajoelhou e começou a esmurrar o portão que dava acesso
a Churippu. "Abram este portão! Pelo amor de Deus, abram!" — Nenhuma
resposta veio. "Se eu soubesse que isto aconteceria eu nunca teria te dado
ouvidos! Me pergunto quantas outras pessoas você já me fez ferir!"
"Muitas. Mas tudo isso foi
necessário."
"Foi um erro eu te escutar todos esses
anos! E outro erro ainda maior foi eu ter deixado você me seguir, para começo
de conversa! Não quero mais te ouvir, ou te ver!" — Cego de fúria, o
Trovador Estranho avistou uma pedra pontiaguda e de considerável tamanho no
chão, e sem pensar, trespassou o crânio de seu ex-companheiro de viagem com
ela. Uma pasta negra e viscosa começou a escorrer de sua testa, e após cair
estatelado no chão seu corpo agitou-se convulsivamente por alguns minutos antes
de expirar de vez.
O Trovador Estranho então começou a chorar,
como nunca chorara antes. Estava triste por ter partido o coração e jogado fora
a confiança da princesa Sarah, mas não tinha ideia do que poderia fazer para se
desculpar. Ele queria ser feliz, mas achava que seria impossível sem a presença
benigna dela. Scarbô estava morto agora, porém, e pôs-se ele a refletir:
"Talvez eu não conseguia ser feliz por
causa deste imbecil me atrapalhando o tempo todo. Agora que ele não mais existe,
posso desfrutar dos prazeres de todos os lugares que visito! E ser feliz! E
quando eu for feliz a princesa Sarah vai me amar de novo e seremos
amigos!"
O Trovador Estranho secou as lágrimas, e
mostrou-se determinado a fazer a princesa amá-lo de novo. Recolheu seus
pertences e voltou a caminhar a esmo pelo mundo.
Agora sem o fardo enorme da tristeza em suas
costas, ele pôde admirar melhor as belezas naturais dos lugares que visitava —
"Que graça esse monte de mato fedorento e infestado de bichos tem?",
era o que Scarbô sempre lhe dizia — e interagir um tanto melhor com as pessoas.
O Trovador Estranho passou meses tentando se reconciliar com o mundo ao seu
redor e reatar as potenciais amizades que seu sentimento tão nocivo pudesse ter
destruído: obteve êxito com algumas, com outras não, mas no geral estava
satisfeito com o que conseguira. Passado muito tempo, quando julgou que chegara
o momento certo, resolveu voltar à princesa.
Ele retornou aos portões de Churippu; a
saudade apertava seu peito. Bateu no portão, achando que não seria atendido,
mas para a sua surpresa o oposto ocorreu. Julgou que era porque ninguém já o
reconhecia mais, pois muito tempo se passara desde que fora expulso do lugar.
Aproveitando a deixa, adentrou o principado — mas teve outra surpresa. Esta,
porém, era bem desagradável.
As casinhas coloridas, repletas de flores e
enfeitadas com origamis, continuavam as mesmas, mas os habitantes de Churippu
estavam todos com semblantes estranhamente abatidos. O rapaz não conseguia
entender o porquê. Abordou um pedestre qualquer na rua e perguntou-lhe:
"Com licença! Este não era o belo e
perpetuamente feliz principado de Churippu?"
"Era, não. Ainda o é. Mas aconteceu algo
que não nos permite ser feliz no exato momento."
"O que aconteceu?"
"Nossa princesa adoeceu gravemente! Ela
está à beira da morte, e não há nada ou ninguém que possa salvá-la. Receio que
de hoje ela não passa."
"Onde ela está?"
"Acamada no castelo. Você me parece
familiar!"
"Pareço, é?"
"Sim! Nos conhecemos de algum
lugar?"
"Posso garantir-lhe que nunca nos vimos
antes, senhor", mentiu o Trovador Estranho, pois não queria que se
lembrassem dele. Ambos se despediram, então, e ele correu ao castelo da
princesa.
Uma das coisas que o Trovador Estranho mais
queria era matar a saudade do castelo no qual passara tanto tempo, mas
precisava chegar rápido à princesa. Correndo sem parar, irrompeu pelo quarto
dela, que continuava no mesmo lugar onde sempre fora.
Mesmo à beira da morte a princesa Sarah
continuava bastante bonita; seu sorriso estava levemente ofuscado, suas faces
descoradas e seus olhos já não brilhavam tão fortemente, mas seu semblante era
dotado de uma morbidez romântica que muitos poetas da formação do Trovador
Estranho (tais como eu) gostam de cantar.
"Você voltou?", perguntou a
princesa. Sua voz saía fraca, quase inaudível. "Está diferente. Mas o que
te faz pensar que eu queria te ver?"
"Os portões se abriram para mim",
disse ele, sentando-se ao lado da princesa em sua espaçosa e perfumada cama.
Ela ficou em silêncio por alguns segundos, e enfim retrucou:
"Bem, eu realmente disse que você poderia
voltar caso parasse de agir como um fardo deprimente. Vai fazê-lo?"
E o Trovador Estranho contou as coisas boas
que havia realizado, e de como assassinara seu demônio sozinho.
"Você realmente deveria ter conversado
comigo a esse respeito. Eu tentei te ajudar, mas você preferiu dar ouvidos a
ele. Boa arte não precisa ser inspirada pela tristeza sempre, querido!"
"E amigos não devem ser jogados fora por
causa de uma obsessão qualquer também, julgo eu."
"Exato! Mas ainda gostaria muito de poder
ler sua obra suprema. Conseguiu realizá-la, com toda essa motivação que você
obteve?"
"Ainda não."
"Bem, tenho certeza que logo, logo
conseguirá. Você é inteligente. Só precisa fazer uma noção melhor da
sociedade."
"Peço desculpas por ter te insultado de
tamanha maneira. A culpa me assombrou por todo esse tempo. Você foi uma das
melhores pessoas que conheci."
"É-me gratificante ouvir isto. Aceito
suas desculpas. Que isto te motive a continuar tentando ser uma pessoa — e um
artista — cada vez melhor."
"Agora você vai ficar bem e seremos
amigos de novo?"
A princesa riu. Ela visivelmente sentia dor a
cada gargalhada, mas do mesmo jeito continuou a rir até que um acesso de tosse
a fez parar enfim.
"Pedir desculpas a alguém que está à
beira da morte não irá fazer esse alguém se curar miraculosamente, meu ingênuo
e querido amigo. Mas morrerei feliz sabendo que você admitiu seus erros, e pode
viver seus dias de agora em diante sem nenhuma culpa. Viver com culpa é ainda
pior do que viver com tristeza."
"Obrigado por tudo."
"Eu também lhe agradeço. Gosto de seus
poemas. Continue fazendo-os."
Tanto o Trovador Estranho quanto a princesa
Sarah estavam à beira das lágrimas. Ele queria beijá-la para se despedir, mas
se julgava indigno de fazê-lo — e nunca gostara muito de beijos mesmo. Sem
pensar muito, o Trovador Estranho reclinou a cabeça no ombro da princesa, e
ambos se abraçaram. Havia muito tempo que ele não era abraçado, e aproveitou
cada minuto do calor corporal dela. Ela cheirava a flores. "Não me
surpreendo", pensou ele.
Eis que a princesa foi perdendo as forças, e
veio a expirar pacificamente; sua expressão facial denotava uma sensação que
cumprira tudo o que pretendia realizar na Terra. Contemplando sua amiga uma
última vez, o Trovador Estranho saiu do castelo — decidiu não ficar para o
enterro da princesa, já que desde muito novo nunca apreciara a noção de
funerais — e pôs-se a perambular o mundo novamente, desta vez com um coração
leve e desprovido do peso que outrora o afligia.
E é aqui que meu conto acaba. Espero que eu
tenha obtido êxito em entretê-los e fazê-los se esquecerem dos percalços da
vida por pelo menos uma hora de teu tempo tão escasso. "Bem, e qual seria
a moral da história?", sei que estão se perguntando. Não me esqueci que
prometi-lhes uma moral. E é a seguinte: o mundo real não é belo e perfeito como
o principado de Churippu ou qualquer outro lugar em que os contos de fadas se passam.
O mundo real é um lugar maligno e repleto de perversão — mas escondidas entre
as camadas de maldade existem partículas de bondade. É só saber procurar. E
assim que encontrarmos tais partículas, devemos nos apegar a elas, pois elas
nos ensinam que nem sempre a dor e a tristeza são as melhores professoras que
alguém poderia ter.
"Uma moral clichê para um conto ainda
mais clichê! Fez-nos perder nosso tempo!", deve ser o que muitos de vocês
estão pensando. Não me importo com a opinião de uma maioria, conquanto que
tenha conseguido instruir pelo menos uma minoria.
Infelizmente não sei o que aconteceu ao
Trovador Estranho desde que deixou Churippu pela segunda vez, ou se alcançou
sua obra suprema (e esta é ainda outra razão para eu não poder dizer que viveu
"feliz para sempre"). Eu, porém, quero pensar que pelo menos
engatinhei para alcançar a minha.
Que, um dia, a minha princesa Sarah possa
saber disso, e se orgulhe de mim.
Matheus Ferrarezi
Matheus Ferrarezi
Trabalhos do autor:
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